Na busca pela perfeição estética, estamos perdendo a nossa identidade e nos tornando todos iguais?

Vivemos um tempo em que os rostos começam a se tornar irreconhecíveis. A nova onda de facelifts não tem mais como meta apagar rugas ou rejuvenescer, mas redesenhar completamente a fisionomia. A cirurgia deixa de ser reparo e passa a ser invenção. O rosto transforma-se em um campo de experimentação estética, onde o desejo de mudança ultrapassa o desejo de reconhecimento. O que antes nos singularizava se dissolve em uma estética de semelhança, alimentada por filtros e algoritmos que orientam o olhar e padronizam o desejo.
Na psicanálise, o rosto é o primeiro espelho da identidade. O psicanalista francês Jacques Lacan descreveu o estádio do espelho como o momento em que a criança, ao ver sua imagem refletida, reconhece-se como um todo e forma uma ideia de eu. É nesse reflexo que nasce o sentimento de unidade, ainda que ilusório. O sujeito passa a se construir entre o corpo que sente e a imagem que vê. Essa distância é necessária, porque é nela que mora o desejo, a criação e a subjetividade. Quando essa distância desaparece, o sujeito corre o risco de se perder dentro da própria imagem.
O rosto transformado em excesso se torna um lugar de desencontro. Quando a cirurgia busca uma coincidência total entre a carne e o ideal, o espelho deixa de devolver o que é próprio. O reflexo já não confirma a existência, mas a substitui. Sigmund Freud chamou de estranho familiar essa sensação de inquietude que surge quando algo íntimo se torna estranho. É o que ocorre quando alguém se olha após uma transformação radical e percebe que a imagem não devolve mais o vínculo com sua própria história.
Os filtros digitais amplificam esse processo. Eles ensinam o olhar a rejeitar o real e a preferir a superfície editada à expressão viva. O filtro não apenas altera o rosto, mas também educa o olhar a desejar o impossível. Cada selfie suavizada se torna um pequeno ensaio da cirurgia que virá, uma promessa de perfeição que nunca se cumpre. O rosto deixa de ser espelho e passa a ser vitrine.
Esse fenômeno ultrapassa o campo estético e toca o simbólico. O rosto é o primeiro território de inscrição da identidade e o principal mediador do vínculo com o outro. É nele que se localiza o reconhecimento, a expressão e a verdade do corpo que sente. Quando o sujeito altera radicalmente essa superfície, o que se perde não é apenas a aparência, mas a continuidade entre o sentir e o mostrar. O novo semblante pode até agradar ao olhar alheio, mas muitas vezes não devolve familiaridade ao próprio olhar.
Há um tipo de solidão que nasce da repetição. Quando muitos rostos começam a se parecer, a diferença se dissolve. A pluralidade das feições, que é também pluralidade de histórias, afetos e modos de existir, se apaga. Vivemos cercados de faces parecidas e, paradoxalmente, mais isolados do que nunca. A padronização estética não é apenas um fenômeno visual, mas um empobrecimento simbólico. O olhar já não encontra alteridade, e o sujeito já não encontra espelho.
A cirurgia, quando nasce de um desejo autêntico, pode ser um gesto de reconciliação com o próprio corpo. Mas quando surge do medo de ser quem se é, transforma-se em sintoma. Nesse caso, a modificação da face não é expressão de liberdade, mas resposta a uma exigência de adaptação. O ideal estético promete alívio, mas entrega estranhamento. O sujeito passa a viver entre duas imagens: aquela que o representa socialmente e aquela que o habita por dentro. E, entre ambas, o reconhecimento se perde.
Essa nova estética, marcada pela dificuldade de se reconhecer, revela um mal-estar próprio da contemporaneidade. Ela expõe a fragilidade de sustentar a singularidade em uma cultura de imagens cada vez mais homogêneas. O que está em jogo não é o envelhecimento, mas a perda da diferença. O rosto, antes linguagem do sujeito, transforma-se em superfície neutra, ajustável e intercambiável. A psicanálise lembra que o eu se forma justamente no encontro entre o semelhante e o distinto. Sem diferença, não há identidade possível.
O rosto é, antes de tudo, uma narrativa. Ele conta uma história que nenhuma outra parte do corpo consegue dizer. Apagar seus traços é também apagar a memória de si. Por isso, o perigo não está em mudar, mas em não mais se reconhecer. Tornar-se outro pode parecer um gesto de reinvenção, mas é, muitas vezes, uma forma de esquecimento.
Talvez o desafio contemporâneo seja menos o de alcançar a imagem perfeita e mais o de permanecer visível dentro dela. Porque o rosto, mesmo transformado, ainda precisa conter algo de verdadeiro, uma fresta de imperfeição que permita que o sujeito continue a se encontrar. O espelho não pede perfeição, pede presença. E o maior risco de um mundo cheio de rostos novos é o de que, aos poucos, já não saibamos mais quem está olhando de volta.





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