"Os Donos do Jogo": a série que transforma o jogo do bicho em thriller de alto nível

O Brasil sempre soube filmar o crime. Mas o crime com caviar, camarote e colar de pérolas — esse é novo. “Os Donos do Jogo” chega para sofisticar a equação. A série, maior aposta da Netflix no Brasil em 2025, estreia no catálogo no dia 29 de outubro e já nasce com vocação para virar referência. Com direção de Heitor Dhalia, a produção se aproxima do universo das grandes tramas de máfia internacionais, mas sem perder o sotaque local — e a malícia brasileira. É um thriller de contravenções que rejeita arquétipos fáceis e se constrói em cima de ambiguidades morais, dinâmicas familiares instáveis e relações de poder que se alternam entre o sofisticado e o brutal.
A brutalidade, aliás, é uma presença constante — não como espetáculo gráfico, mas como linguagem. A série não economiza na violência, ainda que evite o gore gratuito. Quando ela acontece, não raro vem por motivações banais. É aí que reside o desconforto: nas decisões que parecem banais e terminam fatais. E se o gênero exige tensão, a série entrega — mas faz isso com construção e densidade. As tramoias se costuram em jantares requintados, festas restritas, camarotes de luxo. E o sangue, quando escorre, raramente é por lealdade. O poder tem pressa e pouca memória.
A fotografia é um destaque à parte. Sob a direção de Dhalia, o Rio de Janeiro é retratado com uma atmosfera sombria, densa, quase noir, bem distante das praias e dos cartões-postais. A cidade surge como palco de pactos silenciosos, heranças malditas e alianças frágeis. Esse desvio da iconografia clássica da cidade dá corpo à tensão da narrativa: um Rio onde decisões são tomadas nos bastidores, e onde cada sorriso carrega um grau de ameaça.
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No centro da trama está Leila, interpretada por Juliana Paes. Atriz experiente em personagens que habitam zonas de ambiguidade, Juliana retorna ao território do crime com familiaridade. Depois do sucesso massivo de “Pedaço de Mim”, (produção nacional que, em 2024, apareceu no topo da lista de séries de língua não inglesa da gigante do streaming em mais de 15 países), ela entrega aqui um dos papéis mais complexos da carreira. Leila não grita. Ela observa, calcula e engole o mundo sem alterar o tom de voz. É uma mulher sofisticada, que comanda com uma frieza aprendida a duras penas — mas que guarda um segredo que, embora nunca seja verbalizado diretamente, atravessa toda a narrativa.
Giullia Buscacio, Mel Maia e André Lamoglia
MAR+VIN
“Ela não pode mostrar fraqueza, mas é cheia de camadas e emoções contidas”, diz Juliana. A personagem, para além do arco dramático, é também uma resposta à necessidade de ver mais mulheres no centro das histórias, especialmente em territórios historicamente associados à virilidade e à violência. “Vejo um avanço. As ficções brasileiras estão, aos poucos, entendendo que as mulheres são protagonistas não só em histórias de amor ou dramas pessoais, mas também no jogo de poder, nas decisões difíceis e nas relações humanas complexas. Mesmo que o topo das corporações ainda seja dominado por homens, quando falamos de inteligência emocional e humanidade, as mulheres têm papel fundamental”, afirma.
Se Leila é contenção, o Profeta vivido por André Lamoglia é o fogo contido que ameaça escapar pelas beiradas. Conhecido internacionalmente por seu papel em “Elite”, série espanhola da Netflix que o projetou no mercado global, Lamoglia dá aqui um passo relevante dentro da dramaturgia nacional. O Profeta não quer apenas proteger um território herdado – ele quer reescrever as regras. O personagem não chega como sucessor, mas como invasor de um espaço que, aparentemente, não foi feito para ele. E é nessa sensação de inadequação que ele floresce.
“Comecei a preparação em novembro e as gravações foram em janeiro. Passei por intensivos com especialistas que me ajudaram a entender não só o universo do crime, mas também o peso psicológico que isso traz. Houve dias difíceis. Lembro de voltar para casa exausto, sozinho, chorando. Mas nunca pensei em desistir”, conta o ator, que não romantiza o processo. Há algo de “gente como a gente” no relato, que ressoa em tempos em que saúde mental deixa de ser tabu também nos bastidores do entretenimento.
A trilha sonora não aparece na tela, mas nos bastidores foi essencial na construção do personagem. “Eu vou pelo que a cena pede. Se é introspectiva, ouço algo mais melancólico. Se é de ação, escolho algo mais enérgico.” Uma cena de ação com Pedro Lamin foi embalada por Linkin Park (“Faint”) para trazer essa tensão física que o trabalho pedia. Lamoglia também destaca que o personagem começa com princípios, mas logo percebe que princípios não bastam. “Ele começa com crenças muito definidas, mas entende que vai ter que se adaptar para conquistar o que quer. Eu quis mostrar essa complexidade de dentro pra fora, sem criar manias ou trejeitos artificiais.”
A tensão entre Leila e Profeta ganha ainda mais densidade à medida que a série avança. Há algo não dito ali que justifica a presença dela nos momentos mais cruciais do arco dele – mas isso só se revela, com sutileza, mais adiante. E a série respeita o espectador o bastante para não sinalizar o óbvio, nem explicar o que está implícito.
No entorno dessa dupla, orbitam personagens igualmente intrigantes. Xamã, rapper que vem se consolidando também como ator, vive o Búfalo com intensidade. O personagem é o tipo de homem que toma decisões pelo coração – o que, dentro daquele mundo, beira a imprudência. “É um tipo de bandido muito movido pelo ego, muito confiante, que toma decisões mais pelo coração do que pela razão. A maioria dos personagens que fiz antes era mais fria, calculista. O Búfalo é o contrário: quente, impulsivo.” O ator revela que essa entrega emocional foi também um desafio de construção, já que exigiu outra musculatura dramática.
Xamã, aliás, já vem colhendo frutos dessa nova fase: foi premiado como melhor ator coadjuvante no Festival de Gramado por “Cinco Tipos de Medo”, longa ainda sem data de estreia no circuito comercial. Sobre a transição da música para o audiovisual, ele, que lançou recentemente o álbum "Fragmentado", diz: “Sempre quis trabalhar com cinema, mas a música acabou me absorvendo primeiro. E foi por ela que cheguei no audiovisual. Me preparo pra isso há quase dez anos, fazendo aulas, estudando o mercado.”
Na série, Búfalo ocupa um espaço herdado por influência do sogro – o que já cria um desequilíbrio inicial. A esposa, Susana (vivida por Giullia Buscacio), parece ter sido apagada da sucessão, o que naturalmente azeda a relação entre ela e a irmã Mirna, interpretada por Mel Maia. Giullia já havia mostrado domínio do universo policial em “Arcanjo Renegado”, da Globoplay, e aqui entrega uma mulher racional, que não age por impulso. “Ela é muito estrategista. Com o Búfalo, tem um ponto de emoção, mas no geral tudo é pensado.”
Mel, por sua vez, estreia seu primeiro papel adulto com a força de quem sabe onde pisa. Sua Mirna é debochada, sagaz, e não está ali pra ser coadjuvante de ninguém. “Onde se ganha o pão, não se come a carne”, diz a personagem em uma das frases que já merecem camiseta. Ela chama o Profeta de “sócio” – não porque o considere igual, mas porque o vê como meio para chegar onde quer. E deixa claro: se ele cair, ela chega lá sozinha.
Juliana Paes vive na série uma socialite carioca imersa no jogo do bicho, ao lado de Xamã, que interpreta um bicheiro em disputa pelo domínio do território
MAR+VIN
A série ainda inclui um romance gay tratado com naturalidade, o que ajuda a expandir as camadas de representatividade dentro de um ambiente tradicionalmente heteronormativo. E acerta ao colocar as mulheres no centro da ação sem reduzir nenhuma delas a estereótipos como a amante ou a justiceira. “Os Donos do Jogo” ecoa produções que abordaram o submundo da contravenção carioca, como o longa-metragem “Os Enforcados”, de Fernando Coimbra, ou as séries documentais “Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho” e “Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho” (ambas da Globoplay), mas escolhe um caminho próprio. Há um pulso muito específico ali, que observa antes de julgar, e que não tem pressa de concluir. A força da série está no que ela esconde tanto quanto no que ela revela.
Com nomes como Chico Díaz, Adriano Garib, Stepan Nercessian e Bruno Mazzeo no elenco de apoio, a produção se fortalece como um mosaico de histórias em que nenhum personagem está a salvo da própria história. Os Donos do Jogo se organiza em núcleos que vão se entrelaçando com precisão, fazendo da fragmentação uma escolha estética e não um problema de roteiro. Aqui, não há espaço para maniqueísmo - o que é, por si só, um avanço. Todos ali querem ganhar. Alguns querem também sobreviver. Mas ninguém joga limpo.
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